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De dentro para fora: como o bebé percebe o mundo

O tacto é dos primeiros sentidos a desenvolver-se no feto. Sabia que os gémeos até costumam encostar as bochechas para brincar? Acompanhe-nos numa viagem à vida no útero e aos primeiros dias cá fora.
Por Sara Capelo

 

O neonatalogista Fernando Chaves, do Hospital Lusíadas Lisboa, tem observado como os recém-nascidos gostam de ser tocados pelos pais mas não por estranhos. E a este facto não é alheio que o desenvolvimento das papilas gustativas se inicie às 8 semanas de gestação e que, entre as 13 e as 15, estas sejam já semelhantes às de um adulto.

E que o olfato se desenvolva pela mesma altura, pelo que o feto reconhece o cheiro da mãe. Ou que o bebé já tenha o sistema auditivo pronto às 20 semanas (apesar de só responder a sons altos cerca de 21 dias depois) e, portanto, identifique a voz do pai. É que, quando os bebés nascem, “os órgãos já estão quase totalmente amadurecidos”, sublinha o especialista do Hospital Lusíadas Lisboa.

E tudo começou apenas 280 dias antes, quando uma célula de 0,1 mm, o óvulo, foi fecundada por outra centenas de vezes inferior, o espermatozoide. Apesar de todos os avanços que vão proporcionando um conhecimento cada vez mais sólido, para a obstetra Paula Ramôa, do Hospital Lusíadas Porto, o início da vida humana compõe-se ainda de mistério.

“Tem sido muito difícil avaliar o desenvolvimento sensorial do feto, o que o bebé sente e vê, como perceciona o desenvolvimento intrauterino e o ambiente que o rodeia. Não temos mecanismos para o avaliar diretamente”, diz à revista Lusíadas.

Mas as técnicas que existem e os incontáveis estudos são um contributo para compreender a evolução que ocorre desde aquele minúsculo óvulo de 0,1 mm até ao recém-nascido com mais de 40 cm de comprimento – e é incrível. Às três semanas de gestação, raras são as futuras mães que já sabem estar grávidas – contudo, o feto que cresce dentro delas já começou a adquirir o sentido do tacto.

E às 12 semanas, já sente e responde ao toque em todo o organismo, com exceção do topo da cabeça, com menor sensibilidade até ao nascimento. Os gémeos que crescem em bolsas diferentes, por exemplo, começam a usar o tacto para brincarem um com o outro durante o quinto mês de gestação: através da fina e flexível membrana do saco amniótico, encostam as bochechas. E os que dividem a bolsa não têm essa barreira e agarram nos pés e mãos um do outro. Outros órgãos dos sentidos começam a estar formados pelas 24 semanas.

É quando o feto começa a sentir o cheiro e o gosto do líquido amniótico. Às 28 semanas, revela o documentário A Vida no Ventre, da National Geographic, o feto coloca a língua de fora e engole o líquido amniótico porque está a treinar o paladar e o olfato.

Contudo, aqui reside mais um enigma para a obstetra do Hospital Lusíadas Porto: “O que ele sente em termos de paladar do líquido amniótico já é mais difícil de saber.” Mas podemos apontar alguns sinais de que o doce não lhe é desconhecido: quando a sacarina é injetada no líquido amniótico no terceiro trimestre, o bebé suga mais rápido.

As primeiras papilas gustativas a estarem educadas, que já estão desenvolvidas à nascença, são as que sentem o doce: um prematuro de 33 semanas também suga mais intensamente quando os mamilos da mãe estão doces. É mais ou menos pelas 25 semanas, quando os olhos já estão formados, que o feto começa a ser sensível à luz. Mas “o apuramento do sentido” continua, diz Paula Ramôa.

Às 31 semanas, por exemplo, os pais podem fazer jogos simples com uma luz: basta apontá-la para a barriga da mãe. “Os recém-nascidos ficam incomodados com uma luz muito forte e quando se aproxima o fim da gravidez reagem da mesma maneira: defendem-se, movendo-se dentro da barriga, viram-se ao contrário, tapam-se com as mãozinhas.” Na fase final da gravidez, de acordo com as medições da atividade cerebral reveladas em 2010 no documentário da National Geographic, o feto sonha e tem pesadelos: os movimentos dos olhos, feitos com as pálpebras fechadas, são semelhantes aos de todos os humanos fora do útero.

“Mas a preocupação mais recorrente dos pais, refere Paula Ramôa, é se o feto ouve quando falam com ele ou quando põem música perto da barriga. Sim, ouve: o sistema auditivo está completamente intacto à vigésima semana, mas só quase um mês depois é que os nervos que conduzem o som estão totalmente funcionais.

“Começa a conseguir reconhecer sons que vêm de fora, os batimentos cardíacos da mãe, a voz dela”, diz a obstetra. O feto já se move ao ritmo desta voz, com a qual se vai familiarizando. E assusta-se, por exemplo, se a mãe der um grito. “Isso vê-se durante a ecografia. E se ligarmos o doppler dos ruídos cardíacos fetais, o bebé mexe-se imediatamente porque tem um reflexo ao ouvir o seu próprio ritmo cardíaco”, prossegue Paula Ramôa.

E também reage à voz do pai que, por ser mais grave, até é mais facilmente recebida no interior do útero: “A parede abdominal funciona como um filtro e os sons mais graves passam com mais facilidade”, diz a especialista.

Stresse no útero, consequências cá fora

Talvez mais importante seja a influência que o bem-estar da mãe tem para o feto, aponta Paula Ramôa. A especialista identifica seis hormonas que influenciam toda a vida intra e extrauterina do ser humano para o bem (as chamadas hormonas do bem-estar) e para o mal (as do stresse): as pessoas saudáveis apresentam níveis mais elevados de serotonina (que regula o humor, promove um sono tranquilo, inibe a ira e regula o apetite), de oxitocina (libertada pela glândula hipófise quando se estabelece uma relação importante entre pessoas) e de neurotrofina (a hormona antidepressão).

Por outro lado, existem “hormonas libertadas pela mãe em situações de stresse (o cortisol, a adrenalina e a noradrenalina) e o bebé tem a perceção disso porque passam para a placenta”, refere. Um exemplo: quando liberta cortisol, a mãe sente cólicas abdominais, o ritmo dos seus batimentos cardíacos altera-se e pode ficar exausta em situações mais prolongadas.

Ora, sublinha a obstetra,  “este stresse vai passar para o feto. E o cortisol, ao alterar o metabolismo de forma tão intensa, vai induzir-lhe algumas doenças ou alterações metabólicas, nomeadamente na glândula suprarrenal; será um bebé com mais tendência para engordar, ser diabético”, enumera. Ou seja, a memória da vivência pré-natal persiste no organismo e terá consequências diversas muitos anos depois.

“Há estudos feitos por psiquiatras que demonstram que há uma correlação entre a qualidade de vida dos pais, a ligação afetiva entre os cônjuges, o ambiente em família e a vida extrauterina: a adaptação da criança à escola, o comportamento em casa, a agressividade. Tudo se relaciona de um modo quase direto com a forma como a gravidez é vivida”, conclui.

O mito da visão turva do bebé

Não existe, portanto, um antes do parto e um pós-parto, como se ao cortar o cordão umbilical a tesoura cortasse todas as experiências vividas nas cerca de 40 semanas anteriores.

“O nascimento não é um ato isolado, é uma continuação. O bebé tem uma vida intrauterina e o parto não é um ato isolado, trata-se de um período de transição entre a vida intra e extrauterina, que se inicia uns dias antes e termina uns dias depois do nascimento”, explica Fernando Chaves.

O recém-nascido chega a um ambiente diferente, ao qual se adapta de forma progressiva também graças aos órgãos dos sentidos. O que se passa é que nem todos os órgãos estão igualmente maduros, explica: “Os bebés não vêm de uma linha de montagem como os automóveis, completamente prontos.”

O tacto é dos primeiros sentidos que o recém-nascido coloca em alerta. “Adoram ser tocados pelos pais mas não pelos enfermeiros, médicos ou familiares. Por outro lado, tanto a intensidade como a segurança no ato de pegar também transmitem calma ou ansiedade ao recém-nascido”, diz o neonatologista.

O contacto da pele com pele logo nas primeiras horas de vida é hoje uma prática quase universalmente obrigatória por ser benéfica para a mãe (que inicia o processo de estreitamento de laços e acelera a produção de oxitocina que estimula a produção de leite materno) e para o bebé, que logo a identifica.

“Não é só o tacto, mas também a visão e o olfato, que vem perfeitamente definido. O bebé sente o cheiro da mãe”, que reconhece do útero, “o colostro, os líquidos que envolvem o parto”, enumera. Quanto à capacidade de visão de um recém-nascido, não é verdade, sublinha Fernando Chaves, que este veja turvo, ou a preto e branco, ou a uma distância muito curta de 8 a 10 cm. "Os olhos são um dos órgãos que já vêm quase totalmente amadurecidos.

O recém-nascido tem uma visão nítida e policromática até 40-50 cm, apresentando uma ligeira limitação na visão periférica (campimetria até 170.º).” Os sons podem ser mais perturbadores nas primeiras horas de vida. Caso não se verifique uma surdez congénita, o aparelho auditivo vem pronto a ser usado mas não tem memória. É como a memória de um computador acabado de estrear: está ainda vazia.

“O sistema nervoso central recebe inputs. À medida que está cá fora, o bebé vai tendo contacto, familiarizando-se e aumentando a sua base de dados de sons.” Alguns são-lhe mais familiares porque se assemelham aos que lhe chegavam no útero (como os batimentos cardíacos através da aorta): é por isso comum os pais recorrerem aos chamados sons brancos, como um secador de cabelo, para acalmar e adormecer os filhos nos primeiros dias de vida.

“Já tive histórias de bebés que acalmavam com o som da máquina de lavar roupa”, conta. David Chamberlain, autor de The Mind of Your Newborn Baby (A mente do seu recém-nascido, numa tradução livre), estudou como a memória se começa a formar logo a partir de experiências em bebés prematuros logo após o nascimento.

Por exemplo, um desses bebés, já em rapaz, tinha medo de fita adesiva. O psicólogo reconstituiu a sua vida até às primeiras horas e encontrou uma explicação: quando estava ainda na incubadora, a enfermeira arrancou-lhe um pouco de pele com a fita adesiva que o ligava a um dos monitores. Esse desconforto ficou.  

Pode ler este artigo na edição número 9 da Revista Lusíadas, aqui

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